segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Relevante papel das ONGs na qualificação profissional

Valor Econômico - Especial - 4, 5 e 6.12.09 - F3

Terceiro setor: Programas educacionais promovem articulação com ações para o mercado de trabalhoONGs têm papel de destaque na batalha pela qualificação

Rachel Cardoso, para o Valor, de São Paulo
04/12/2009

Divulgação

Viviane Senna: "É uma tragédia, pois poucos passam pelo funil para chegar ao mercado de trabalho preparados"
A trajetória decrescente da taxa de desemprego no Brasil, hoje em torno 7,5%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é o principal indicador do dinamismo do mercado de trabalho no país. Os sinais, porém, vão além dos números. Poucas são as empresas nas quais não há ofertas de vagas. Basta consultar os departamentos de recursos humanos.

Para vir a integrar esse contingente de mão de obra qualificada apta a surfar na onda do emprego é preciso percorrer um caminho espinhoso. A maioria da população ainda precisa vencer dificuldades básicas, que começam pela alfabetização, passando pela falta de estímulo para sonhar com uma vida melhor e continuar os estudos.

Esses obstáculos foram vencidos pela estudante Liliane Alves Rodrigues, de 20 anos, que graças ao suporte de ONGs, encontrou alternativa para se profissionalizar. "Recebi três propostas de uma escola para ministrar palestras remuneradas sobre reciclagem para crianças e pré-adolescentes", orgulha-se. "Aprendi muito e estou feliz em poder repassar tudo isso adiante", avalia. Ela é um dos 363 participantes que concluíram os 14 meses de formação de uma das quatro edições do Programa Jovens Urbanos, iniciativa do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) em conjunto com a Fundação Itaú Social.

A meta é oferecer formação para jovens de 16 a 20 anos das periferias das grandes cidades em parceria com as ONGs locais, que recebem todo o suporte necessário, desde capacitação até recursos, para desenvolver competências e habilidades dos jovens, ampliar seu repertório cultural e social, e promover o acesso ao competitivo mercado de trabalho. "O objetivo maior é a reintegração dos participantes à escola, para que possam terminar os ensinos fundamental e médio", diz o coordenador técnico do Programa Jovens Urbanos, Wagner Antonio dos Santos.

Para isso, a abordagem é ampla. Por meio de uma parceria com a Prefeitura de São Paulo, o participante recebe ajuda mensal de R$ 240. O dinheiro também ajuda o jovem a conhecer museus, teatros e bibliotecas. "Isso quebra a segregação", observa Santos. Outra medida é a desmistificação tecnológica promovida por uma assessoria competente. Munidos de celulares, por exemplo, muitos deles começaram a produzir filmes.

São oportunidades que despertam o interesse do jovem e resultam numa série de projetos de impacto para a comunidade. É o caso do Pneumania, idealizado pelo grupo do qual participa Liliane, na ONG Casa dos Meninos, em Lajeado, zona leste da capital paulista. "Não havia cadeiras suficientes aqui e havia pneus velhos espalhados pelo bairro todo", conta a educadora Alessandra Patrícia Moraes. "Então, eles decidiram reciclar os pneus e fabricar cadeiras."

Para a coordenadora técnica do Cenpec, Maria Amabile Mansutti, trata-se de uma medida em pequena escala que amplia as possibilidades num plano conjunto de ações. "A estratégia é multissetorial", diz. "O Brasil não tem políticas públicas de educação articuladas e o nosso papel é justamente promover essa articulação para colocar em prática macrossoluções."

Um resultado dessa conexão pode ser visto em Tocantins, onde a parceria com o Instituto Ayrton Senna (IAS) produziu números expressivos. Naquele Estado, grande parte da rede pública estava atrasada em pelo menos dois anos. Com a implementação do Acelera Brasil - programa de correção de fluxo do ensino fundamental - 99,5% dos alunos que o concluíram foram beneficiados. Os números são auditados externamente e a avaliação do impacto nos municípios, especificamente, foi feita pelo economista do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), Ricardo Paes de Barros.

Na prática, o Acelera Brasil combate a repetência que gera a distorção entre a idade e a série que o aluno frequenta e, consequentemente, o abandono escolar, o que permite que um dia ele alcance uma qualificação profissional. E Tocantins não é exceção. Desde que foi criado em 1997, mais de 600 mil crianças foram atendidas. Em 2009, o programa está presente em 876 municípios de 26 Estados e Distrito Federal. "É a prova de que a vacina contra a má qualidade do ensino funciona em qualquer região", afirma a presidente do IAS, Viviane Senna. "É uma tragédia, pois poucos passam pelo funil para chegar ao mercado de trabalho preparado."

As estatísticas impressionam. De cada dez crianças que ingressam no primeiro ano do ensino básico só cinco terminam o fundamental e apenas três, o médio. "O índice de letalidade é de 70% e não há doença no mundo que mate crianças nessas proporções", diz Viviane. Muito desse percentual é engrossado pela repetência sucessiva de série, que desestimula o aluno a seguir adiante e provoca o descrédito da própria comunidade em que vive. "Atuamos com estratégia de varejo para enfrentar o atacado, porque esse baixo nível de aprendizagem geral é reflexo da falta de gestão."

A professora do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Universidade de São Paulo (USP), Carmen Sylvia Vidigal Moraes, concorda. "Temos de focar na formação desse adulto e desse jovem, que estão defasados educacionalmente", afirma. "Cerca de 70% das pessoas acima de 15 anos de idade não têm 11 anos de escolaridade e, desse montante, 50% sequer concluíram o ensino fundamental e apresentam baixa qualificação profissional."

Carmen destaca que o projeto de lei que cria o Programa Integrado do Jovem e Adulto, ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, com foco no ensino médio misto - técnico e de formação geral - é, pela primeira vez, uma proposta de elevação da escolaridade com qualificação profissional inicial. "É na base, ensino médio e fundamental, que se possibilita ao cidadão progredir."

Seja por essa deficiência na base ou pelas condições socioeconômicas precárias das famílias, o fato é que essa situação se reflete intensamente no ensino superior, estágio em que quase metade das vagas disponíveis no Brasil está ociosa.

Nesse contexto, vale destacar o Programa Geração MudaMundo, da Ashoka, cujo portfólio brasileiro congrega mais de 800 empreendimentos idealizados por 3 mil jovens beneficiados em São Paulo, Ceará, Santa Catarina e Minas Gerais.

"Ao propor o desafio de planejar um empreendimento com o propósito de transformar a sociedade em que vivemos o jovem desenha um projeto de vida para si", diz a diretora do projeto, Olívia Martin, uma espanhola radicada no Brasil.

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