sábado, 17 de outubro de 2009

Consolidação das leis sociais

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 16, 17 e 18.10.09 - E2
Opinião Jurídica:
A Consolidação das Leis Sociais no Brasil


Marcelo de Aguiar Coimbra
16/10/2009

A Constituição Federal de 1988 consagrou um "Estado social", fundado nos valores da solidariedade, dignidade humana e Justiça social, valores esses que devem orientar as relações sociais e econômicas. De outro lado, o Brasil constitui um "Estado democrático de direito".

Estamos num processo de amadurecimento de nosso Estado social de direito, iniciado com o reconhecimento pela ordem jurídica da "função social" da propriedade, do contrato e da empresa, sobretudo a partir da edição do novo Código Civil. No entanto, para a realização do Estado social de direito é necessária ainda a regulação pela ordem jurídica das políticas e dos direitos sociais - educação, saúde, habitação, assistência social. Nesse sentido, o objetivo fundamental de uma codificação social é fixar os fins, princípios e regras aplicáveis a todas as questões sociais, de forma a instituir um "sistema legal social", coerente e com unidade de sentido.

A codificação social proporcionaria estabilidade jurídica à regulação das questões sociais. Não é apenas a economia que carece de leis e contratos para assegurar a segurança nas suas relações. As políticas sociais e a garantia dos direitos sociais também precisam de estabilidade jurídica.

A edição de um "Código Social" tem ainda uma grande força simbólica e também educativa. Exemplo ilustrativo disto foi a promulgação do Código de Defesa do Consumidor.

Por fim, outra grande vantagem seria a despersonalização das políticas sociais. As políticas sociais no Brasil, via de regra, adotam um nome fantasia e passam a ter um dono. Com a codificação a garantia de direitos sociais afirma-se como um elemento integrante do Estado brasileiro e do patrimônio jurídico de nossa cidadania.

A codificação social não é uma novidade absoluta no mundo. Cite-se como referencia o Código Social alemão (Sozialgesetzbuch), que estabelece princípios gerais e uma série de prestações sociais. As chamadas ajudas sociais (Sozialhilfe) não são vistas na Alemanha como um mero assistencialismo, mas como um direito social decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana.

Se a codificação social a princípio é muito bem-vinda, ela não deve ser encarada como a mera reunião em um único documento de várias leis existentes, sob pena de transformá-la num mero apanhado desordenado de normas; todos os esforços devem ser dirigidos para a instituição de autêntico sistema legal, coerente e com unidade, alicerçado em valores, princípios e regras comuns a todas as políticas e direitos sociais.

É preciso ainda ficar muito claro o sentido da palavra social, pois a abrangência desta codificação está diretamente vinculada ao sentido que se dê a ela. A principio, o direito é sempre social pois dirige-se à regulação das relações sociais. O outro sentido da palavra social diz respeito à preocupação com o mais fracos socialmente e encontra uso na expressão assistência social.

Mas nenhum desses usos do termo é capaz de, por si só, caracterizar uma codificação social avançada. O termo social deve ser associado a determinados assuntos ou questões como educação, saúde, habitação, saneamento básico e políticas de ajuda social e mais recentemente de geração de renda e economia solidária.

Nesse sentido, a codificação não se resumiria à regulação de políticas sociais e garantia de direitos para os menos favorecidos. A codificação social deve garantir o mesmo padrão de qualidade em ambos os sistemas de satisfação dos bens sociais, o público e o privado. Os mais privilegiados economicamente também são titulares de direitos sociais - daí porque, por exemplo, o ensino privado e os planos de saúde também são regulados por lei -, mas também devem cumprir deveres sociais. Assim, o Código Social deveria estabelecer regras e obrigações aplicáveis não apenas ao Estado, mas também aos indivíduos e entidades privadas - o salário mínimo é um exemplo. A tão falada responsabilidade social empresarial também passa a assumir, até certo ponto, a natureza de responsabilidade jurídica.

Por fim, a fixação neste diploma legal de ajudas sociais a todos aqueles que se encontram em situação de necessidade vem a concretizar um dos valores basilares da ordem constitucional brasileira, a dignidade da pessoa humana. Com isso, reafirma-se a natureza das ajudas sociais de verdadeiros direito sociais pertencentes ao patrimônio jurídico dos cidadãos brasileiros, afastando-se de vez a visão daqueles que entendem que elas constituem mero favor assistencialista.

Outro desafio desta codificação social é definir um modelo de governança das questões sociais, definindo legalmente e sistematizando o envolvimento da sociedade civil, cidadãos e empresas na definição e controle das políticas sociais, tornando assim as decisões mais transparentes e eficazes.

Vencidos todos esses desafios, a codificação social não só faria sentido como representaria o momento mais elevado do desenvolvimento e consolidação de nosso Estado social de direito.

Marcelo de Aguiar Coimbra, é advogado, mestre em direito pela Universidade de São Paulo. Realizou estudos de mestrado na Universidade de Coimbra - Portugal, é doutorando em direito pela Universidade de Colônia, Alemanha. Coordenador acadêmico do Centro de Estudos em Governança Corporativa (CEG) da Fipecafi, fundação de professores da USP

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