terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Mão de obra alternativa nas empresas

Valor Econômico - Especial - 13.02.2014 - A14. Estrangeiros se tornam alternativa para falta de mão de obra no Sul. Empresas brasileiras estão recorrendo ao uso de mão de obra pouco comum no país para enfrentar o cenário de mercado de trabalho aquecido e taxa de desemprego em nível recorde de baixa. Argentinos, haitianos, índios e presos em regime semiaberto estão sendo empregados como uma solução para a "escassez" de trabalhadores, principalmente para atividades braçais, em que os salários não passam de R$ 1,5 mil. No Sul do país, o Valor encontrou algumas dessas mudanças em visitas a municípios distantes das capitais e com atividades predominantemente agrícolas ou agropecuárias, que convivem há mais tempo com outras dificuldades de mão de obra, como a saída de jovens do campo rumo a grandes centros urbanos. A reportagem é de Vanessa Jurgenfeld, publicada no jornal Valor, 13-02-2014. Em Vacaria (RS), quase na fronteira com Santa Catarina, um grupo de argentinos e 275 índios foram contratados para trabalhar pela primeira vez na colheita da maçã. Em Chapecó (SC), haitianos que entraram no Brasil pelo Acre agora estão trabalhando em frigoríficos, supermercados e na construção civil. Além disso, 11 empresas da cidade catarinense recorrem ao trabalho de presos que cumprem pena em regime semiaberto no presídio agrícola de Chapecó. "Aqui, quando o telefone toca, é empresa verificando se tem mão de obra disponível", conta o gerente laboral do presídio agrícola, Roger Gabinescki, que acredita que a situação do mercado de trabalho do municipio é parecida com a de boa parte do país: faltam pessoas para trabalhar em atividades pesadas e com salário de até R$ 1,5 mil. A maior parte dos convênios do presídio com empresas foi assinada entre janeiro 2013 e o início deste ano. Já são 312 presos que trabalham fora e voltam para dormir no presídio. Gabinescki diz que, hoje, só existem mais 30 condenados que podem trabalhar fora e ainda não estão contratados, mas há demanda de empresas para pelo menos mais 150. As empresas levam e trazem os apenados ao presídio, dão o almoço e os equipamentos de segurança. O salário mínimo (R$ 724), somado em alguns casos à uma remuneração extra por assiduidade, não passa de R$ 1 mil. Desse total, o preso fica com 75% e 25% são destinados para um fundo para manutenção das instalações do presídio. O benefício ao apenado é a redução da pena. A cada três dias de trabalho, um a menos de pena. Não há registro em carteira e as empresas não pagam impostos sobre essa mão de obra. "Temos que buscar saídas. Não tem gente para contratar", diz Érico Tormem, dono da Fibratec, em Chapecó. De acordo com dados da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), a região Oeste tem a menor taxa de desemprego do Estado, ao lado do Vale do Itajaí. É estimada em 3,1%, percentual menor do que a taxa nacional de desemprego mais recente, de 4,3%, calculada pelo IBGE. José Edson Moura, de 42 anos, é um dos presos contratados e trabalha como soldador na Fibratec. Foi condenado a 14 anos por tráfico de drogas e tentativa de homicídio. Inicialmente ficou no regime fechado, depois conseguiu ir para o semiaberto. Conta que tem usado o dinheiro do salário (sobram cerca de R$ 500 por mês) para ajudar a família e um pouco para auxiliar nos custos com advogado. A Fibratec emprega hoje 25 apenados e 23 haitianos. Tormem foi um dos primeiros a trazer haitianos para Chapecó, ainda em 2011, quando o assunto da falta de mão de obra já o preocupava. "A gente foi instalar uma estação de tratamento de esgoto em Rio Branco (AC) e encontramos esse monte de gente chegando do Haiti", lembra ele. "Em 15 dias, voltamos para lá para contratá-los. Primeiro descemos 7. Depois vieram mais 6 ou 7. Depois mais 12 e mais 15. Comecei a trazer gente para amigos da região. Gente que eu nem conhecia ligava, porque queria também esse pessoal", conta Tormem. Os haitianos recebem, em média, R$ 1,2 mil de salário em Chapecó. Os presos, um salário mínimo: R$ 724. No caso dos presos, esse é o mínimo estabelecido por lei. Os haitianos recebem todos os direitos trabalhistas e o mesmo salário de brasileiros que exercem a mesma função. Parte das atividades que os haitianos executam possui um adicional de insalubridade, como quando trabalham em temperaturas abaixo de zero em algumas áreas dos frigoríficos. Em Chapecó, os haitianos têm moradia paga pelas empresas e estão dividindo casas. Alguns casais decidem morar sozinhos e arcam com os custos. Philibert Monestime, 48 anos, é um deles. No Haiti, polia carros. Estudou até o primário. Trabalha na Fibratec, mora com a mulher, grávida de sete meses, e quer ainda levar para a cidade dois filhos, que entraram recentemente pelo Acre. "Os empresários estão juntando o útil ao agradável. Há duas coisas que estão sendo resolvidas: a escassez e a questão dos tributos [com os presos, as empresas não pagam tributos]", afirma o professor de economia e diretor de planejamento da Unochapecó, Márcio Paixão. O economista diz que os empresários têm alguma razão quando reclamam que estão com dificuldades de encontrar funcionários por impacto de benefícios como o Bolsa Família, ou mesmo porque jovens não querem assumir determinados trabalhos. "Antes era muito fácil contratar jovens saídos do ensino médio. Hoje, você vê vários carros de som passando nos bairros tentando puxar essa mão de obra e nem sempre conseguem". Somada a essa situação, ele destaca a continuidade do êxodo de jovens do campo para grandes centros urbanos. Na construtora Zorzo, em Chapecó, há hoje 60 funcionários. Desses, 50 são presos em semiaberto. Antônio Carlos Zorzo, dono da construtora, diz que há um benefício para a empresa, porque o salário não é alto e não há cobrança de tributos sobre a mão de obra. "Alguma coisa você consegue de mão de obra no mercado tradicional, mas não o suficiente", diz ele, que já contratou cinco apenados depois que cumpriram suas penas. Um dos que esperam em breve ser contratado pela Zorzo é Leocir Leite, condenado a 30 anos de prisão e que em poucos dias terá cumprido a pena. Leite calcula que, com o trabalho, reduziu sua pena em cerca de três anos. Hoje é mestre de obras na construtora. No ano passado, a Coopercentral Aurora começou a buscar haitianos no Acre e também intensificou a contratação de índios e presidiários. Hoje, são 320 haitianos. No mês que vem, dois ônibus devem ser enviados ao Acre para buscar mais um grupo. Segundo a empresa, o custo de trazer cada haitiano fica entre R$ 1,8 mil e R$ 2 mil. Além dos haitianos, trabalham na Aurora 800 índios e 34 presos. Além disso, há 220 ônibus para transportar trabalhadores de cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. "Hoje, se você abre uma vaga, tem que ir atrás do pessoal. Se não fizermos isso, ficamos meses com a vaga em aberto", diz o presidente da Aurora, Mário Lanznaster. Atualmente, a Aurora calcula que teria vagas para mais mil pessoas nas funções de produção. Em Guatambu (SC), o índio kaingang Cleomar da Silva, 26 anos, estava no início da semana à procura de emprego na linha de produção da Aurora que fica no município. Segundo ele, muitos índios "enjoam de trabalhar na roça e no sol", e por isso seguiu a dica de um vizinho na aldeia, localizada em Gramado dos Loureiros (RS), e foi para um processo de seleção na cooperativa. O índio Valdomiro Isaías, contratado em novembro de 2012 por R$ 1,1 mil para a sala de cortes de frango, diz que prefere trabalhar em um emprego fixo, com horário pré-estabelecido. "Na roça, você trabalha até a hora que conseguir enxergar", diz ele, que antes era safrista de alho e cebola, em Caixas do Sul (RS). O diretor-executivo do Sindicarnes-SC, representante das agroindústrias, Ricardo Gouvêa, diz que a falta de mão de obra para linha de produção é uma situação enfrentada por muitas empresas, mas que fica mais evidente no ramo agropecuário, devido à forte dependência de trabalho manual. No outro extremo geográfico de Santa Catarina, em Balneário Camboriú, uma cidade turística, também já é bem visível a presença de haitianos e a disputa por essa mão de obra. Na alta temporada de 2012 para 2013, a empresa Ambiental trouxe 80 haitianos do Acre para efetuar serviços de coleta de lixo, varrição de ruas e limpeza de praias. Com salários de R$ 1,1 mil (serventes) a R$ 1,5 mil (coletores), cerca de 20 haitianos permaneceram na empresa. A Ambiental criou um alojamento numa pousada, após enviar um ônibus para buscá-los no Acre. Segundo a gerente regional da empresa, Kelly Caimi do Amaral, alguns se adaptaram ao serviço e outros foram procurar outra coisa para fazer. Empresários e gestores ouvidos pelo Valor consideram que o salário - de até R$ 1,5 mil - não é muito atrativo para diversas funções, o que pode ser o motivo de serem recusadas por muitos candidatos, mesmo quando estão desempregados, porque acreditam que podem achar algo melhor em espaço curto de tempo. Os empresários alegam, no entanto, que aumentar o salário para atrair mão de obra prejudicaria a lucratividade. Dados do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho, indicam que o Sul é a região que mais abriga haitianos com carteira de trabalho assinada, quando analisados os dados de 1º de janeiro de 2010 até 30 de setembro de 2013, os mais recentes disponíveis. De 12.352 haitianos que tiveram carteiras de trabalho emitidas, 5.670 estão de fato trabalhando, sendo 1.275 no Paraná, 1.020 no Rio Grande do Sul e 971 em Santa Catarina. As estimativas não oficiais indicam a presença de 20 mil haitianos trabalhando no país (com e sem carteira de trabalho). Mais do que garantir o próprio sustento, o objetivo dos haitianos é enviar dinheiro para as famílias que ficaram no país de origem, devastado em 2010 por um terremoto que deixou mais de 200 mil mortos. Duval Fernandes, professor da PUC-MG, autor de pesquisa em fase de conclusão sobre os haitianos no Brasil, diz que eles ganham o mesmo que os demais trabalhadores que exercem atividades semelhantes, mas a vida é diferente: como pagaram "coiote" para vir ao Brasil, possuem dívidas de US$ 4 mil só pela travessia. Vacaria busca argentinos e índios para colheita da maçã. Os quase dez quilos de erva-mate trazidos na bagagem serão o ponto de contato mais próximo com a terra natal que o grupo de 40 argentinos que desembarcou na semana passada no Rio Grande do Sul terá até meados de março. Eles chegaram a Vacaria, quase na fronteira com Santa Catarina, para trabalhar como safristas nos pomares de maçãs em um dos principais polos de produção da fruta no país. A alguns quilômetros daqui, em uma das três fazendas da Rasip, o braço agrícola do Grupo Randon, parte dos 275 índios trazidos de aldeias do Mato Grosso do Sul já estão a campo, ainda reconhecendo o novo terreno e aprendendo que a brutalidade no corte da cana, função pela qual praticamente todos passaram, não se aplica na colheita de maçãs. A reportagem é de Bettina Barros, publicada pelo jornal Valor, 13-02-2014. Índios e argentinos são figuras inéditas na colheita em Vacaria. Com dificuldade em atrair mão de obra para os pomares, o município enfrenta mais uma safra difícil, com um déficit em torno de 15 mil trabalhadores - um quarto da população local. Por razões que vão do desinteresse dos jovens pelo trabalho braçal até a migração para a construção civil e a atratividade dos benefícios ao desempregado, a escassez de gente fez com que os recrutadores das fazendas fossem cada vez mais longe encontrar trabalhadores para esta safra. "Até os anos 80 contratávamos só gente de Vacaria. Nos anos 90, partimos para Rio Grande do Sul, depois Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Agora temos de ir além", diz Celso Zancan, diretor da Rasip, terceira maior produtora da maçãs do Rio Grande do Sul. Para a safra 2013/14, que começou a ser colhida semana passada, foram contratados 1.152 colhedores para os mil hectares de pomares - entre eles os 275 índios das etnias Terena e Guarani- Kaiowá, de Dourados e redondezas. Com apenas 87 hectares plantados, o argentino Carlos Pozed, há 30 anos no Brasil, resolveu trazer compatriotas. Houve dois anos de "namoro" com o sindicato dos trabalhadores rurais de Missiones, na Argentina, diz ele. O primeiro ônibus veio na terça-feira passada com 40 homens. Outro ônibus fretado com igual número de pessoas está previsto para chegar em breve, o que deve suprir a maior parte dos 150 trabalhadores temporários necessários. "Tive de trazer três representantes do sindicato argentino para que eles vissem com os próprios olhos que a gente precisa de mão de obra aqui", diz. A escolha por argentinos foi facilitada pela conjuntura atual argentina e, em especial, de Missiones. A 600 quilômetros de distância de Vacaria, a província tem sentido mais acentuadamente as turbulências econômicas do país. Com forte base na produção de erva-mate, Missiones vem perdendo produtores depois que o governo de Cristina Kirchner tabelou os preços da bebida. Com teto de preço e inflação alta, muitos preferiram deixar de plantar e buscar outra alternativa de renda. Ou seja: sobra mão de obra na província. "Enfrentamos um desemprego de 10% em Missiones, acima da média nacional de 7%", afirma o argentino Rodolfo Maximiliano Gigena. "O Brasil é atualmente para os argentinos o que os Estados Unidos são para mexicanos", diz. A mão de obra externa não chega a estranhar a quem é de Vacaria. De acordo com produtores, o município gaúcho é o terceiro maior empregador do país no mês de fevereiro, quando a colheita da maçã atinge seu ápice. O próprio Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município confirma que a cidade não tem condições de oferecer anualmente 15 mil pessoas para a colheita da maçã. "Todos os anos tem que trazer gente de fora", diz Anita Boschi, do departamento de assalariados do sindicato. Um dos motivos que leva a isso é a própria característica da cultura. Há hoje no Brasil basicamente duas variedades da fruta - Gala e Fuji, que respondem por 95% da oferta nacional. O problema é que elas são colhidas só entre o início de fevereiro e meados de abril. Isso leva a uma demanda concentrada e alta de trabalhadores para um curto período. No resto do ano a necessidade cai e fica em 4 mil a 5 mil trabalhadores, no máximo. "Como não é possível manter todos trabalhando por mais tempo, as pessoas não têm interesse nos pomares", afirma Leandro Bortoluz, presidente da Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã (Agapomi). "Outro problema é que o trabalhador não quer ser registrado só por 45 dias [o contrato padrão da safra da maçã]. Ele prefere continuar recebendo o seguro-desemprego. Isso atrapalha muito". Segundo José Bueno, coordenador do Sistema Nacional de Emprego (Sine) de Vacaria, há, de fato, casos de disponibilidade de empregados para cargos em aberto. Ele não cita números, mas diz que a implantação do novo sistema do Sine no Rio Grande do Sul, em 2010, tende a amenizar essa questão. "Antes, a pessoa chegava aqui para protocolar o pedido de seguro-desemprego e não era possível checar se havia vaga na área dela. Agora essa verificação de oferta e demanda é imediata, online. Se há vaga, já encaminhamos o trabalhador para o emprego", diz ele. O êxodo para as cidades maiores - um fenômeno global -, o aumento da área plantada com pomares no município (de 10 mil hectares para 14 mil hectares em uma década) e o aquecimento da economia brasileira também ajudam a explicar o quadro. "O sujeito sabe que se não trabalha em pomar, encontra outra coisa fácil. A construção civil levou muita gente", diz o argentino Pozed, ecoando a percepção generalizada entre fruticultores de Vacaria. Como toda migração de mão de obra, Vacaria contabiliza benefícios e malefícios. Sem os safristas de fora, a colheita da maçã do município, de quase 250 milhões de toneladas e responsável por 24% da oferta nacional, apodreceria nos pomares. Com eles, o custo da produção sobe um pouco mais com o transporte - ida e volta à cidade natal, uma exigência legal - e regulamentação de documentos. "E a cada ano, o problema se repete. A taxa de retorno na safra seguinte é inferior a 50%", diz Zancan, da Rasip. "A agricultura se torna cada vez mais a última opção para o trabalhador". A chegada dos safristas de fora, no entanto, mostra que trata-se de uma questão de referência. Em seu primeiro dia de trabalho, o terena Telino Machado, o Techo, explicou ao Valor que chegou a Vacaria porque ouviu de outros índios que o "emprego é bom". Acostumado ao trabalho do corte de cana desde os 13 anos, ele diz que lidar com maçãs é mais fácil. "No corte da cana o pessoal não respeita muito. E aqui faz mais dinheiro", diz ele. Segundo a Agapomi, os colhedores recebem, em média, um salário fixo de R$ 850 mais bonificação por produtividade. Se for um bom colhedor, o rendimento pode chegar a R$ 1.500, R$ 1.700. "Na cana a gente nunca receberia isso", diz Techo. No caso dos argentinos, o negócio é mais interessante: com o câmbio favorável, cada R$ 1 mil recebidos nos pomares equivalem a 4 mil pesos depois da fronteira.

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