Valor Econômico – Brasil – 07.03.2016 – A3
Crise transforma empregado em
pessoa jurídica
Por Marta Watanabe
Parcela importante dos empregados
com carteira assinada, principalmente os de alta renda, está se transformando
em pessoa jurídica. Essa mudança estrutural do mercado de trabalho tende a se
agravar com a recessão e compromete o subsídio cruzado do regime
previdenciário, sistema pelo qual os trabalhadores de maiores salários
financiam os de renda mais baixa, mostra estudo de José Roberto Afonso,
economista do Instituto Brasileiro de Economia (IbreFGV), e de Paulo Vales,
engenheiro e consultor de empresas. Para Afonso, os dados da Pnad trimestral,
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já mostram o efeito
da recessão sobre essa mudança estrutural. Segundo a Pnad, os trabalhadores do
setor privado com carteira assinada representavam 39,2% da população ocupada no
fim de 2013. No trimestre encerrado em novembro do ano passado, dado mais
recente disponível, a fatia caiu para 38,4% No mesmo período o trabalhador por
conta própria avançou na participação de 23,2% para 24,5%. "O desemprego
cresceu inicialmente entre aqueles assalariados de maior renda. Há uma troca
clara e rápida de posição entre aqueles ocupados com carteira assinada
relativamente aos trabalhadores por conta própria", diz Afonso. A crise
tende a acentuar a migração de trabalhadores com maior renda para o grupo das
pessoas jurídicas. Essa transformação, porém, acontece há mais de uma década. O
levantamento foi realizado para a Associação Brasileira das Entidades Fechadas
de Previdência Complementar (Abrapp). O estudo de Afonso reúne informações
sobre emprego, Imposto de Renda (IR) e contribuição previdenciária como
indicativos da mudança. Entre eles, o dado que mostra a disparidade na evolução
do emprego por faixa de salários. Entre 2002 e 2014, o estoque global de
empregados formais cresceu 82%. O aumento foi puxado principalmente pelos trabalhadores
que receberam até três salários mínimos, faixa com elevação de 110% no número
de empregados. No mesmo período, houve decréscimo de 18% entre os que ganharam
mais de 15 salários. A fatia dos trabalhadores que ganham acima de sete
salários mínimos caiu, nesse período de 12 anos, de 11,4% para 10,4%. O
decréscimo foi ainda mais acentuado se a linha de corte for 20 salários
mínimos. Nesse caso, a participação cai de 2,3% para 0,9% do total de empregos
formais. A decomposição por faixa salarial dos trabalhadores que contribuem
para o regime previdenciário também mostra a redução dos empregados de renda
mais alta. De 1988 a 2013, aponta o estudo a parcela dos que ganham até três
pisos previdenciários subiu de 21% pra 81,8% do total dos trabalhadores que
contribuem para o sistema enquanto que os que ganham acima de dez pisos caiu de
31,5% para 2,6%. Até mesmo numa faixa intermediária, destaca Afonso, a
participação caiu de 47,5% para 15,6%. Ao mesmo tempo, diz, aparece um montante
expressivo de contribuintes que se dizem proprietários de empresas e que ganham
cada vez mais lucros e dividendos. Isso indicaria que parte dos empregados de
maior salário passou a prestar serviço como empresa. De acordo com dados das
declarações de pessoa física de 2013, 2,1 milhões de declarantes 7,9% do
total disseram receber lucros e dividendos, inclusive de microempresas.
Apesar de representar menos de 10% da quantidade de declarantes, esses
contribuintes respondem por 27% do total dos rendimentos declarados, mas por
apenas 10,3% dos rendimentos tributáveis. Os que não recebem lucros representam
92% do total de contribuintes, respondem por 73% da renda declarada, mas arcam
com 89,6% da renda tributável. Para Afonso, a disparidade entre renda total e a
tributável existe porque a parcela preponderante dos rendimentos dos indivíduos
de mais alta renda, não vem de formas tributáveis, como salários e aluguéis.
Isso acontece por decisão do profissional, que prefere se organizar como uma
pessoa jurídica para pagar menos IR ou por decisão do empregador, que deixa de
contratar pela CLT como fuga da alta tributação sobre folha de salários. Essa
reestruturação, diz Afonso, irá impor crescente dificuldade para custeio do
regime geral de previdência. "Isso torna necessário repensar as políticas
públicas, em especial a tributação e o financiamento do sistema
previdenciário." Pedro César da Silva, tributarista e sócio da Athros
Auditoria, explica que muitas vezes o profissional liberal prefere ser
tributado numa pessoa jurídica do que submeter os recebimentos à tabela
progressiva do IR das pessoas físicas. O governo encaminhou recentemente ao
Congresso uma proposta para mudar a tributação de lucros e dividendos. O alvo
são empresas, especialmente as prestadoras de serviço, que declaram pelo lucro
presumido, mas também apuram resultados pela contabilidade tradicional. O
objetivo é tributar na tabela do IR parte do lucro que essas empresas
distribuem com base na contabilidade completa e que não tenha sido alcançada
pelo lucro presumido. Uma parte da transformação dos trabalhadores em empresas,
no entanto, diz Silva, surge da decisão do empregador que, ao contratar
empresas, reduz a carga tributária sobre folha de salários. Na regra geral, diz
o tributarista, o empregador recolhe a contribuição ao INSS pela alíquota de
20% sobre a folha de salários. Ou seja, paga a contribuição calculada sobre o
salário total do empregado. Ao contratar uma empresa, não há recolhimento para
o INSS. O trabalhador, que passa a prestar serviço como empresa, irá pagar a
contribuição somente sobre o que declara como prolabore. "Geralmente, é
um salário mínimo, bem menos do que a receita total do contrato de
trabalho." Ou seja, o que deixa de ser recolhido pelo empregador da pessoa
física não passa a ser pago pelo trabalhador que virou empresa. O impacto para
o sistema previdenciário está aí, aponta o estudo. "Muitos esquecem que o
empregador contribui para o regime geral de previdência sobre o valor total dos
salários enquanto o empregado apenas até um teto", diz o levantamento.
Atualmente o teto é de R$ 5.189,82 ao mês. Para Afonso, a decisão de contratar
serviços como firma individual em vez de trabalhador com carteira assinada é
tomada basicamente pelo empregador, que pretende fugir dos encargos patronais
do Brasil, um dos maiores do mundo. Fábio Castro, pesquisador da Universidade
de Brasília, diz que é muito difícil saber se o processo de
"pejotização" se dá por iniciativa do trabalhador ou do empregador.
De qualquer forma, diz ele, os dados mostram que o fenômeno é relevante e com
certeza tem impacto no regime previdenciário. Para ele, um agravante é a
desoneração de folha, que possibilita a alguns setores uma redução do
recolhimento da contribuição previdenciária ao permitir que o cálculo do
tributo sobre folha seja alterado para o de uma determinada alíquota sobre
faturamento. Castro defende que a discussão da desigualdade no país não deve se
resumir à receita, às bases de tributação. "É preciso verificar o lado da
despesa, com o que se gasta, verificar certos subsídios e benefícios", diz
o pesquisador. Na desoneração de folha, exemplifica ele, a questão é qual a
lógica. O benefício é concedido por NCMs [Nomenclatura Comum do Mercosul]. Qual
o custobenefício disso? Parece um processo aleatório." O diretorpresidente
da Abrapp, José Ribeiro Pena Neto, diz que a mudança estrutural apontada por
Afonso tem impacto na previdência como um todo, seja pública ou privada. Ao
transformarse em pessoa jurídica, diz Pena Neto, o trabalhador deixa de
contribuir da mesma forma para o regime público e tornase um desafio para as
empresas de previdência privada. O público do setor, diz Pena Neto, é o
trabalhador de renda mais alta. Para ele, a transformação apontada mostra que é
necessário repensar a previdência privada que tem atualmente entre seus alvos
as empresas que não oferecem planos privados a seus empregados e também os
trabalhadores de renda mais alta. O presidente da Abrapp destaca que é preciso
discutir mecanismos para promover a poupança privada de longo prazo e, entre eles,
sugere, maiores incentivos tributários relacionados ao Imposto de Renda das
pessoas físicas e das empresas menores, que estão no lucro presumido.
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