quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Representações diplomáticas desrespeitam direitos trabalhistas

Abuso com sotaque estrangeiro


Autor(es): VERA BATISTA

Jornal do Commercio - Trabalho - 25.10.2012 - p. A-4
Obrigadas a seguir a legislação brasileira, 80% das embaixadas não pagam direitos a funcionários nativos. Muitas ignoram as condenações

Pouco mais de um mês atrás, o motorista Carlos Augusto Pereira, 53 anos, cometeu um ato de desespero. Acampou por 15 dias em frente à Embaixada do Chile, em Brasília, até conseguir ter garantido o recebimento de seus direitos por 14 anos de trabalho, avaliados em R$ 100.613,93. Depois de muita espera, protocolou, na última segunda-feira, um acordo com representantes da missão no Tribunal Regional do Trabalho (TRT). O caso de Carlos Augusto, porém, não é uma exceção. O desrespeito às leis é comum. De acordo com pesquisa do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Embaixadas, Consulados e Organismos Internacionais no Brasil (SindNações), 80% das 129 embaixadas têm dívidas trabalhistas.

Um agravante é a precariedade dos dados a respeito do assunto. Há pouca coisa disponível no sistema do Banco Nacional de Devedores Trabalhistas do Tribunal Superior do Trabalho (TST), uma espécie de cadastro de maus pagadores. Só para dar um exemplo, o levantamento do SindNações aponta que pelo menos 48 embaixadas estão com o nome sujo, o que quer dizer que já foram condenadas pela Justiça. Na lista do tribunal, contudo, aparecem apenas 18. E, para piorar, a legislação é dura com o nativo e protege inadimplentes estrangeiros.

Nas ações judiciais concluídas pelo TST, onde já não cabe mais recurso, grande parte dos trabalhadores que ganham a causa não recebe os direitos. As representações diplomáticas nem sequer comparecem às audiências. Quando perdem o embate judicial, recorrem ao poder de imunidade e ao benefício da impenhorabilidade, ou seja, ao fato de não poderem ter os bens apreendidos. “Se, por um lado, existem bons chefes, por outro, acontece de tudo um pouco: diplomatas que agridem, humilham, desrespeitam, cometem discriminação racial e estabelecem vínculo quase de escravidão”, conta Raimundo Luís de Oliveira, presidente do SindNações.

Embora consideradas território estrangeiro, as embaixadas são obrigadas a seguir a legislação trabalhista do Brasil, em obediência à Convenção de Viena, de 1961. Na prática, no entanto, não funciona bem assim. O jardineiro Deusdete dos Santos, 45, disse que passou todo o tipo de humilhação na Embaixada do Panamá. Entrou em 1999. Dez anos depois, chegou a embaixadora Gabriela Carranza. “Ela gritava que não gostava de mim, porque era negro. Eu não podia beber água ou ir ao banheiro”, recorda. Ganhou o processo por assédio moral, maus-tratos e atos atentatórios à saúde. Espera receber R$ 55 mil.

Ao Correio, a embaixadora garantiu que as alegações são “falsas”. E se diz ofendida por ser chamada de racista. A causa ainda corre no TST. Não foi paga, segundo Gabriela Carranza, porque as acusações sujam a imagem da instituição. “Quero limpar o meu nome. Até hoje, não devemos nada. Depois que cheguei aqui, acertei todos os problemas com (o pagamento de) INSS e FGTS”, garante. De acordo com ela, o presidente do SindNações, Raimundo de Oliveira, foi condenado a pagar a ela R$ 10 mil em um processo por difamação.

Só promessas

Em 2003, Élcio Ferreira da Silva, 45, motorista bilíngue e diretor do SindNações, entrou na Embaixada da Namíbia com promessa de salário de R$ 1,1 mil, a ser elevado para R$ 2 mil no ano seguinte. “Como a maioria dos casos, não houve aumento ou pagamento dos direitos. A embaixada ainda me demitiu sem respeitar a estabilidade de líder sindical e me deve, na Justiça, R$ 150 mil”, explica Ferreira. Além disso, ele chegou a andar pela rua com R$ 150 mil para pagamento dos funcionários. “Eu pegava os dólares, convertia-os em reais e levava de volta. Às vezes, davam-me dinheiro a mais para me testar”, conta.

Beatriz Villanova, 63 anos, vem trabalhando há mais de 30 anos como secretária de diretoria e tradutora de francês em diversas embaixadas. Em 2007, entrou com uma ação contra a da Tunísia e, em maio último, ganhou a causa, avaliada em R$ 97,9 mil. “O juiz tentou que o acerto fosse abatido do pagamento do Brasil às exportações do país. O Ministério de Indústria e Comércio (MDIC) até me deu a lista dos produtos, mas nada aconteceu. Depois, o próprio ministério disse que não era possível.” Esse processo, no entanto, representou um avanço. “O Ministério do Trabalho, pela primeira vez, protestou a embaixada, que agora está com o nome sujo e dificuldade para alugar imóveis”, lembra Beatriz.

Um representante da Embaixada da Tunísia, que se identificou apenas como Fechichi, disse estar disposto a fazer um acordo com Beatriz Villanova no mês que vem. “Não tenho ideia do que aconteceu. Estamos sem embaixador, mas abertos ao diálogo. Tão logo o nosso contador retorne de férias, em novembro, entraremos em contato com ela para resolvermos o assunto amigavelmente”, promete. Até o fechamento desta edição, a Embaixada da Namíbia não havia retornado as ligações da reportagem.

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